Capítulo 11 – As Partes que Faltam
A estrada seguia silenciosa sob as rodas do carro, como se o mundo também tivesse se calado para ouvir o que viria a seguir. Maria Antonieta mantinha o olhar fixo em Willys, e pela primeira vez ela sentiu que ele estava prestes a se abrir de verdade. Algo mais profundo, mais doloroso — algo que talvez ele nunca tivesse dito em voz alta.
Como se o tempo se abrisse também, convidando as memórias a saírem do esconderijo. Willys não olhava para Antonieta, mas havia algo em seu perfil, na maneira como suas mãos seguravam o volante, que dizia mais do que palavras. Ela esperou, paciente.
— Minha mãe… — começou ele, a voz mergulhada em um poço antigo — Ela não apenas foi abandonada. Ela foi dividida.
Antonieta se virou levemente, atenta.
— Dividida?
Willys assentiu devagar.
— Meu pai não foi embora sozinho. Quando deixou nossa casa, levou uma parte da nossa família com ele.
Ele fez uma pausa. Respirou fundo, como se as palavras o ferissem à medida que saíam.
— Ela estava grávida de Mariana… eu ainda era pequeno. Mas me lembro da dor. Da ausência…
— A dor da minha mãe… — ele continuou, com a voz baixa, quase um sussurro. — Não foi apenas o abandono. Foi o que ele levou com ele.
Antonieta franziu levemente o cenho. — Levou?
Willys assentiu, os olhos distantes, como se enxergasse um tempo que ainda sangrava por dentro.
— Meu pai não foi embora sozinho. Ele levou… um filho. Meu irmão.
— O quê? — Antonieta se virou completamente para ele, o coração disparado.
No interior do carro, em movimento pelas estradas que cortavam os campos ao entardecer, o mundo parecia mais lento.
Willys mantinha os olhos firmes na estrada, mas sua voz, quando finalmente falou, soou como se emergisse de um lugar muito distante — um tempo escondido entre as dores que nunca haviam cicatrizado.
— Minha mãe… Clara Valmont… era uma mulher extraordinária. — disse, quase num sussurro.
Antonieta permaneceu em silêncio, sentindo que não deveria interromper.
— Mas a vida foi cruel com ela. Muito antes de tudo isso… muito antes de mim ou Mariana trabalharmos nesta casa… houve um dia em que ela foi deixada para trás. Estava grávida. Grávida da Mariana. — Ele respirou fundo. — E ele… o homem que deveria ser nosso pai… foi embora. Não apenas a deixou. Levou uma parte da nossa família com ele.
Antonieta virou-se lentamente para olhá-lo. Havia uma tensão contida naquela frase.
— Levou…? — murmurou.
Willys assentiu, com um nó na garganta.
— Levou um dos filhos com ele… eu nunca soube ao certo. — Seu olhar se perdeu no horizonte. — Era uma criança ainda. Sumiram da noite pro dia. Minha mãe implorou, lutou… mas ele era um homem influente. Tinha poder, nome, dinheiro… e, mais importante, tinha segredos demais para permitir que ficássemos juntos.
Antonieta sentiu um arrepio. Aquilo explicava tanto… a dor nos olhos de Willys, a cumplicidade entre ele e Mariana, o silêncio de Clara Valmont, sempre tão digna e reservada.
— Minha mãe nunca se recuperou. — ele continuou. — Criou a mim e a Mariana sozinha. Sem nunca contar ao mundo a verdade. Sem nunca poder dizer que tinha perdido um filho para o próprio pai.
O silêncio que se formou no carro parecia conter o som de um passado engolido por uma escuridão densa.
— Sua mãe tentou procurar?
— A vida inteira. — respondeu ele com amargura contida. — Mas as portas sempre se fechavam. E, com o tempo, ela foi ficando em silêncio. Eu aprendi com ela… que às vezes, para sobreviver, a gente precisa esconder até as saudades.
— Você sabia quem era esse irmão? — perguntou Antonieta, com a voz embargada.
Willys demorou a responder.
— Apenas o nome… um nome que ficou preso à garganta da minha mãe até o último dia dela. Mas ele se perdeu no mundo com o pai. Cresceu longe, com outro sobrenome, outra identidade…
Antonieta apertou os dedos sobre o joelho. Um nome começou a pulsar em sua mente. Um nome que ela ouvira em Paris… Stone.
Ela fechou os olhos por um instante. Um fio de dúvida percorreu sua espinha.
Mas não disse nada.
Ainda não era hora.
Willys então a olhou por um instante, com uma sinceridade crua:
— Por isso sou como sou, Antonieta. Por isso escondo mais do que falo. Porque uma parte de mim foi arrancada antes mesmo de eu entender quem eu era. E outra parte… ainda está aí fora.
Ela não sabia o que dizer. Mas naquele momento, soube com toda a certeza do mundo que aquele homem diante dela carregava uma dor ancestral. E que talvez, no fim de tudo, ela fosse o lugar onde ele finalmente encontraria paz.
Ecos de um Nome Esquecido
Era fim de tarde quando Maria Antonieta encontrou Mariana na varanda lateral da mansão. O céu estava dourado, e as sombras dançavam suavemente sobre o piso de mármore. Mariana estava sentada, com um livro fechado sobre o colo e um olhar distante voltado para o jardim.
Antonieta aproximou-se em silêncio e sentou-se ao seu lado. Durante alguns instantes, nenhuma das duas disse palavra. O silêncio, porém, não era incômodo — havia ali uma cumplicidade que vinha crescendo nos últimos dias, feita de pequenos gestos, olhares respeitosos e o calor discreto da verdade recém-descoberta.
— Sabe — começou Mariana, com a voz tranquila —, às vezes me pergunto se minha mãe previa que um dia eu falaria disso com você.
Antonieta a olhou com doçura. Mariana prosseguiu:
— Quando éramos crianças… ou melhor, quando ele era criança… minha mãe costumava me contar sobre um menino que ela amava antes mesmo de vê-lo crescer. — Fez uma pausa. — Ela dizia que Willys tinha um irmão. Que eram gêmeos. Idênticos como reflexos em um espelho, mas que a vida os separou antes que crescessem juntos.
Antonieta sentiu o coração acelerar.
— Ela falava sobre isso com clareza?
— Com dor. E com um certo mistério. Só dizia que o pai deles levou um… e que o outro ficou. — Mariana sorriu com melancolia. — E que Willys carregava não só o próprio destino, mas também o peso da ausência do irmão.
— Você sabe o nome dele? — sussurrou Antonieta.
Mariana assentiu lentamente.
— William. William Stone.
Aquela confirmação caiu sobre Antonieta como um sussurro divino. Era o nome que se escondia nas entrelinhas, o elo perdido entre as histórias ouvidas em Paris e os segredos que se desenrolavam agora diante de seus olhos.
— Então é verdade... — disse Antonieta, em voz baixa. — O nome… já esteve tão perto de mim.
Mariana a olhou, curiosa. — Como assim?
Antonieta hesitou por um momento, depois sorriu, como quem decide guardar um segredo por enquanto.
— Talvez eu te conte outro dia.
— Quando estiver pronta — respondeu Mariana, com gentileza.
E então se permitiram ficar em silêncio outra vez, enquanto o sol desaparecia por trás das colinas. Duas mulheres, unidas por afetos verdadeiros, por verdades dolorosas… e por um passado que ainda guardava revelações surpreendentes.
Entre Confissões e Laços de Afeto
Naquela noite, a casa estava envolta em um silêncio sereno. A lua lançava reflexos suaves sobre os jardins e as flores da estufa exalavam um perfume adormecido. Mariana e Antonieta, sentadas em frente à lareira da sala azul, compartilhavam uma taça de vinho e um momento raro de intimidade.
— Você parece mais leve ultimamente… — comentou Mariana, observando Antonieta com um sorriso curioso.
— Talvez porque tudo esteja começando a fazer sentido. Ou talvez… porque eu finalmente parei de fugir do que sinto — respondeu ela, com um olhar perdido nas chamas.
Mariana permaneceu em silêncio por alguns segundos, depois murmurou:
— Eu também parei de fugir. Há coisas que carrego desde muito nova… histórias que nunca contei a ninguém. Mas sinto que posso confiar em você.
Antonieta a olhou com ternura. — Pode.
Mariana respirou fundo, ajeitando-se na poltrona.
— Willys sofreu muito, sabe? Houve um tempo em que ele se apaixonou por alguém… com toda a pureza do mundo. Ele acreditava que ela era o amor da vida dele. Foram noivos. Ela o prometeu um futuro inteiro, cheio de planos e juras eternas.
— Mas algo aconteceu… — sussurrou Antonieta, já adivinhando a dor que viria.
— Sim… ela o abandonou. Fugiu com um desconhecido. Um homem que ninguém da família conhecia. Foi algo inesperado, cruel. Mamãe quase enlouqueceu ao ver Willys desabar daquela forma. Ele ficou em silêncio por semanas. E quando voltou a falar… já não era o mesmo.
Antonieta sentiu uma dor aflorar em seu peito, como se por instantes tivesse sentido o peso da perda de Willys.
— E ele… se apaixonou de novo? — perguntou, com um fio de voz.
Mariana fitou o fogo, como se buscasse respostas nas brasas.
— Sim… — respondeu baixinho. — Mas nunca revelou quem era. Só disse que era diferente de tudo o que já tinha sentido. Que essa mulher o fazia esquecer as dores, mas também o fazia ter medo… medo de se entregar e ser ferido novamente. Ele dizia que amava sua doçura, sua coragem… que só o olhar dela era capaz de silenciar os fantasmas.
O coração de Antonieta bateu com força.
— Nunca falou o nome?
— Nunca. Mas uma vez, sem saber que eu escutava, ele escreveu algo num papel e disse: “Se ela soubesse o que sinto, talvez eu estivesse livre. Mas se ela souber, talvez eu a perca.”
Antonieta sorriu tristemente, o vinho na taça já intocado. Mariana percebeu o brilho nos olhos dela e apertou sua mão, carinhosa.
— Eu não sei quem é essa mulher… mas sei que ele ainda a ama. E que ela talvez tenha mais poder sobre ele do que imagina.
Um silêncio cheio de significado pairou entre elas. E naquela noite, sem precisar dizer mais nada, um laço sincero e duradouro nasceu entre Antonieta e Mariana — feito de verdades compartilhadas, memórias curadas e sentimentos que, embora complexos, agora encontravam espaço para florescer.
E se for eu?
Naquela noite, depois que Mariana se recolheu, Antonieta permaneceu sozinha na sala azul. A lareira ainda ardia, mas era dentro dela que o fogo verdadeiro começava a ganhar força.
“Se ela soubesse o que sinto, talvez eu estivesse livre. Mas se ela souber, talvez eu a perca.”
A frase ecoava como um sussurro, repetindo-se entre as paredes de sua mente. Ela fechou os olhos e tentou se lembrar dos pequenos gestos de Willys, dos olhares calados, das mãos trêmulas ao entregá-la uma flor, dos silêncios carregados entre uma pergunta e outra. Cada gesto parecia agora pertencer a um outro idioma. Um idioma que ela começava, enfim, a decifrar.
Levantou-se, atravessou o corredor e foi até seu quarto. Abriu a gaveta mais discreta do criado-mudo, de onde retirou uma folha dobrada com cuidado. A carta. Aquela que encontrara e nunca teve coragem de devolver. Leu mais uma vez:
“Não sei se devo dizer seu nome. Talvez porque pronunciá-lo me torne vulnerável demais. Mas se soubesse o quanto seus olhos me curam e ao mesmo tempo me queimam… talvez compreendesse o que tento esconder.”
Ela pousou os dedos sobre o papel e murmurou, quase sem voz:
— E se for eu…?
Subitamente, tudo parecia fazer sentido. A aproximação de Willys, sua cautela, a forma como a tratava como se fosse frágil e, ao mesmo tempo, indispensável. Seus silêncios, seus sustos, os desvios de olhar sempre que ela ousava ir além.
O coração de Antonieta apertou-se num compasso de descoberta. Ela lembrou-se da expressão de Willys ao ver a carta em sua mão — aquele olhar de espanto, de medo, de verdade exposta.
— Ele me ama… e tem medo de me perder.
Mas por quê? O que o impedia de dizer? A mágoa do passado? A presença de Mariana? As cicatrizes ainda abertas?
Naquele instante, uma certeza a invadiu como uma onda clara e serena: ela precisava saber a verdade dele — por inteiro.
Na manhã seguinte, com o dia ainda começando a nascer, Antonieta traçou um plano. Não seria precipitada, nem impulsiva. Esperaria o momento certo. Mas quando esse momento chegasse, ela estaria pronta.
— Se ele realmente me ama… não poderá continuar calado.
As Primeiras Investidas
Antonieta não queria ser precipitada — sabia que palavras mal colocadas poderiam fazer Willys se fechar como uma concha. Então decidiu usar o que tinha de mais refinado: sua intuição e sua sensibilidade.
Naquela manhã, pediu que Willys a levasse até o ateliê de uma antiga amiga da família. A viagem seria longa, pelas estradas rurais que serpenteavam os campos. Sara, atenta, percebeu o pedido incomum, mas não comentou. Apenas lançou um olhar cúmplice quando a viu sair com um livro em mãos e o envelope com a carta guardado em sua bolsa de couro.
Dentro do carro, o silêncio era confortável, mas tenso — como o prelúdio de uma sinfonia prestes a começar.
— Você gosta de silêncio? — perguntou ela, fitando a paisagem pela janela.
Willys sorriu levemente, mantendo os olhos na estrada.
— Às vezes, sim. O silêncio tem mais respostas do que as palavras.
Antonieta assentiu, como quem concorda — mas também como quem provoca.
— E você, Willys… é alguém cheio de respostas ou cheio de silêncios?
Ele a olhou pelo retrovisor. Havia um brilho sério, quase melancólico.
— Acho que sou alguém cheio de segredos.
A resposta o entregou mais do que ele imaginava. Antonieta desviou o olhar e tirou a carta da bolsa, apenas a segurando entre os dedos, sem mostrá-la.
— Sabe… às vezes a gente encontra palavras que parecem ter sido escritas pra nós… — disse ela, com a voz baixa. — Palavras que queimam a alma e acariciam o coração. Mas o autor… nunca assina com nome. Talvez por medo.
Willys apertou o volante com mais força. Seus olhos, fixos na estrada, vacilaram por um instante.
— Por que está me dizendo isso?
— Porque quero entender… até onde alguém pode esconder o que sente. — Ela o encarou com firmeza, mas sem agressividade. — E até quando.
Willys engoliu em seco. Sabia que ela estava falando com camadas — e cada camada descia direto ao centro de tudo o que ele queria calar. Mas era cedo. Ou ele achava que ainda era cedo…
Antonieta então sorriu, fechando a carta de volta e guardando-a na bolsa como se aquilo não fosse nada. Mas seus olhos diziam o contrário: “Estou perto da verdade. E você sabe.”
Ao final do trajeto, antes de descer do carro, ela tocou levemente a mão de Willys.
— Obrigada… por me trazer até aqui. E… obrigada pelo silêncio também.
Ele a olhou, confuso e tocado. Havia algo no jeito como ela o olhava que o deixava vulnerável, despido de defesas. Mas ainda assim, ele nada disse.
Antonieta, por sua vez, desceu com um ar leve. Ela não precisava de mais. Sabia que havia aberto uma porta. E era questão de tempo até ele atravessá-la.
As Palavras que Não Disse – O Olhar de Willys
Willys manteve as mãos no volante mesmo após Antonieta fechar a porta do carro. Por um instante, o silêncio ali dentro se tornou ensurdecedor. O cheiro suave das flores que ela sempre usava ainda pairava no ar — e o som delicado da voz dela parecia ecoar nas paredes do seu pensamento.
“Palavras que queimam a alma e acariciam o coração…”
Ele apoiou a testa no volante, fechando os olhos com força. A carta. A bendita carta. A mesma que escrevera num momento de vulnerabilidade, sem endereço, sem nome, apenas com o desejo de aliviar o que o peito não aguentava mais carregar.
Nunca pensou que ela fosse encontrá-la. Muito menos que ela fosse a destinatária sem nome. Mas ao vê-la segurando o papel, sabia.
E aquele olhar… Não era de acusação, nem de dúvida. Era um olhar que pedia coragem. Um olhar que dizia: “Eu já sei, só preciso que você diga.”
Ele se recostou no banco, deixando escapar um suspiro pesado. Lembrou-se do passado — da dor, da traição, da perda. Tudo o que o fez esconder sua alma sob camadas e mais camadas de silêncio.
Mas Antonieta… ela era diferente. Era leve, mas intensa. Cautelosa, mas corajosa. E agora, ela estava ali, tocando as bordas do seu segredo mais íntimo — e ele sentia que estava a ponto de ceder.
> “Ela não perguntou diretamente, mas perguntou com tudo o que é. Com o jeito, com os olhos. Ela quer saber se é ela. E a verdade é que… é.”
Willys passou a mão no rosto, tentando se recompor. Sabia que estava caminhando por uma linha tênue: entre manter sua proteção intacta ou se entregar, pouco a pouco, à verdade e ao sentimento que estava crescendo — ou talvez, voltando à tona.
Naquele dia, ele não teve coragem de dizer nada. Mas ao vê-la se afastar pela estrada, com os cabelos ao vento e aquele meio sorriso sereno, teve a certeza de algo que há muito negava:
> Ela era a paz que ele nunca imaginou merecer.
E talvez… fosse hora de parar de fugir.
VEJA O DÉCIMO SEGUNDO CAPÍTULO DO ROMANCE…